31 janeiro 2012

Cabedelo




Tem alguma coisa antiga que me liga a Cabedelo. Não é à toa que me mudei para cá. Quando vivia embarcado na costeira, meu pai montou sua casa em Cabedelo. E contam que quando ele vinha no trem de João Pessoa, jogava os pacotes das compras para minhas tias que esperavam na beira da linha. Um pouco de minha pré-história, portanto, foi vivida aqui.


Em Cabedelo reencontro alguns dos cheiros de minha infância. O sargaço do mar, a confusão dos perfumes e catingas da feira, o azedo do lodo seco nos esgotos a céu aberto.


Aqui reencontro o formigueiro matinal de trabalhadores e estudantes buscando sem pressa seus destinos, dividindo o sol com os cachaceiros que vararam a noite nas esquinas.


Aqui também fica mais fácil visualizar o conjunto do descaso do poder público pelo bem-estar dos cidadãos. A feira fede desordenadamente, enquanto um elefante branco que seria o novo mercado se arrasta há dois mandatos do mesmo prefeito. O lixo se acumula nas esquinas e as ruas calçadas sem drenagem ou saneamento se transformam em focos de mosquitos à mais rápida chuva de verão.


Sei que algumas pessoas devem me achar definitivamente desequilibrado em trocar o conforto pequeno-burguês do Bairro dos Estados por uma vizinhança barulhenta e mal cuidada. Mas é esta mesma vizinhança que ainda conversa nas calçadas, que varre a porta das casas de manhã bem cedo, que dá bom-dia quando passa por você, que baixa o som quando você reclama.


Talvez esta seja a última mudança na minha vida. Talvez seja a última vez que faço um puxadinho numa casa. Por isso não quero que seja apenas uma mudança de uma casa para outra. Talvez o que eu queira mesmo seja mudar o rumo da minha história, trazendo-a mais pra perto da história dos meus pais.

casanaestrada2.blogspot.com

25 janeiro 2012

Números e nomes



“Só tenho um número, só sou um número”. Foi o que Eliane disse à imprensa, mostrando um papel com a senha que recebeu depois que foi expulsa de sua casa na comunidade de Pinheirinho, na cidade paulista de São José dos Campos. Ela estava há quatro horas numa fila sem conseguir ser atendida. Tudo que queria era recuperar seus pertences deixados no barraco em que vivia com mais seis pessoas.  
Eliane é só um número dentre muitos que marcam esta operação de guerra em que se transformou a desocupação de Pinheirinho. Numa área de mais de um milhão de metros quadrados vivia uma população estimada entre seis a nove mil pessoas. Três vezes maior que o Estado do Vaticano, a área estava avaliada em 180 milhões de reais.  
Se quisermos mais números, saberemos que dois mil policiais militares com o auxílio da guarda municipal foram usados para desalojar os moradores. O reforço veio com mais de 220 viaturas, dois helicópteros além de carros blindados. Além disso, 40 cães e 100 cavalos também foram usados para intimidar e agredir os moradores.  
Podemos pensar que não há nada que justifique tamanho aparato e os atos de violência indiscriminada que o Estado usou contra pessoas pobres, abandonadas à própria sorte pelo poder público.   A não ser que suspeitemos de uma ação integrada entre o poder executivo de São Paulo e alguns membros do judiciário em benefício de algum poderoso muito bem articulado nos meios políticos estadual de federal. 
Quando sabemos que a área de Pinheirinhos pertencia à massa falida de uma empresa de propriedade de Naji Nahas, um bandido que já foi preso por evasão de divisas e lavagem de dinheiro, aí as coisas se esclarecem. Aí fica difícil manter a esperança de que Eliane deixe de ser apenas um número e que um dia venha a ser tratada como a Cidadã Eliane Borges Figueira.       

18 janeiro 2012

Tragédia grega


Uma mãe abandona um filho na porta de uma igreja porque já não tem como alimentar nem a si nem à criança. A cena se multiplica em frente às ONGs e aos órgãos governamentais. Não estou falando de nenhum país subdesenvolvido nem atingido por qualquer desastre natural. É na Grécia, país membro da comunidade européia, onde nasceu a civilização ocidental, que as mães estão tomando esta decisão extrema em favor da sobrevivência de seus filhos.          
De todas as misérias que a crise européia vem causando, nada se compara a esta tragédia que se abate como uma epidemia sobre as famílias gregas. Uma sucessão de governos perdulários torrou o dinheiro vindo da comunidade européia para ser aplicado em infra-estrutura e melhoria de serviços. Veio a crise financeira e o desequilíbrio das contas levou o país à bancarrota. Daí em diante, todo o dinheiro que entrou foi para livrar o prejuízo dos bancos. O governo que se virasse para cumprir as exigências dos financiadores. Era preciso cortar fundo na própria carne, diziam. Mas o que sangrou, como sempre, foi a carne do povo.
Uma das saídas apontadas para minorar o efeito da crise grega seria o país vender uma parte de suas ilhas, aquelas pérolas povoadas pelos mitos fundadores da cultura ocidental. Podemos supor que isto seria a vergonha suprema para o povo grego. Mas uma vergonha maior está sendo imposta pelos senhores do dinheiro aos indivíduos que vagam pelas ruas destituídos dos seus bens, dos seus empregos. E desta população humilhada, destaca-se o drama dessas mulheres levadas ao sacrifício extremo de abandonar seus filhos para livrá-los da morte pela fome.
Nenhum deus pode ser apontado como autor desta tragédia. Ela é fruto da maldade dos homens. Dos poderosos de sempre, alheios ao sofrimento que causam a seus semelhantes em qualquer lugar do mundo.

09 janeiro 2012

O que pode uma crônica?




Uma leitora desta coluna me pede, humildemente, que fale a respeito do baixo salário que ganha um policial militar na Paraíba. Ela é filha de um militar reformado que ficou doente quando soube do “acréscimo de 03% que o Governo lhe deu”.


Com toda sinceridade, não sei quanto ganha um PM, nem estou a par do percentual que o Governo concedeu aos policiais reformados. O que me chama a atenção é o profundo nível de desespero da leitora, que usa talvez como último recurso um pedido de ajuda a um cronista sem qualquer poder de influência nos atos do Governo.


Não sei a quantas instâncias a leitora recorreu. Imagino quantas portas lhe foram fechadas, quantas horas de espera foram desperdiçadas nos corredores inóspitos das repartições públicas. Suponho quantas ofensas teve que engolir, quanto desdém teve que suportar. Imagino o tamanho do seu desamparo para ter que decidir pedir a minha ajuda.


Não sei, minha cara leitora, o que este cronista pode fazer por você e pelo seu pai. Tudo o que tenho para oferecer é a minha solidariedade. Pois sou filho de um funcionário público que morreu sem receber uma migalha do que o Governo Federal lhe devia. Também fui vítima da humilhação nos corredores da burocracia. Sofri com minha mãe a espera dos “atrasados do meu pai” para comprar um sapato novo no Natal, uma roupa melhor nos aniversários. E os atrasados nunca foram pagos.


Conheço o gosto ruim da desesperança dos herdeiros da humilhação e do descaso do poder público. Sei também que esta crônica não terá poder nenhum para mudar a situação do pai da minha leitora ou de qualquer outro injustiçado. Uma crônica pode muito pouco. Mas espero que possa deixar claro para a minha leitora que ela não está sozinha no mundo. É só procurar outros injustiçados para que, juntos e organizados, possam exigir o direito de viver com dignidade.


02 janeiro 2012

Sobrevivemos



Aqui estamos, em pleno 2012. Fomos às lojas comprar presentes. Fomos ao supermercado comprar comida. Voltamos muitas vezes para comprar bebida. Visitamos amigos, recebemos parentes, fomos a vários encontros de confraternização. Se estou aqui escrevendo e você está aí, desperdiçando tempo em me ler, é porque sobrevivemos à maratona de fim de ano.


Estamos aqui, já singrando as águas rasas do ano novo, em direção ao mar alto e imprevisível que o tempo nos reserva. Daqui já podemos ver as ondas que nos esperam. Em breve será carnaval, em seguida vem a semana santa, depois as férias juninas. Virá agosto com suas sombras, depois setembro com suas luzes e logo-logo estaremos ocupados com mais um fim de ano. A cada fim de mês, teremos a costumeira vertigem do dinheiro sumindo. A cada fim de semana a dúvida se vai dar praia. A cada segunda-feira a chateação do recomeço da canseira.


Aqui estamos, eternos sobreviventes. Sobrevivemos à mega-roubalheira dos políticos. Sobrevivemos aos desatinos da globalização. Sobrevivemos à pequenez das decisões burocráticas.


Resistimos também ao olho grande dos falsos amigos, ao assédio telefônico das operadoras de cartões de crédito, à fome de multa dos agentes de trânsito, à falta de ruas para a enxurrada de carros, à insanidade dos motoboys, aos grandes e pequenos crimes dos traficantes.


Aqui estamos, mais uma vez lançados na espiral do tempo. Sabedores de que uma espiral não passa nunca duas vezes no mesmo lugar. Ou subimos, ou descemos. E quanto mais modestos formos na subida, mais leve nos será cada descida.


Aqui estamos mais uma vez dispostos ao que der e vier. Não esqueçamos que teremos eleições este ano. Vem aí mais uma temporada de promessas, mentiras e muita baixaria. Somos ossos duros de roer. Sobreviveremos.

Imagem obtida em: http://gartic.uol.com.br/desenhos