27 abril 2011

Como diz o ditado


Quando botou a baleadeira no bolso de trás das calças, ouviu sua mãe dizer: “boa romaria faz quem em sua casa está em paz”. Bateu a porta da casa e saiu.

“Cachorro que muito anda, apanha pau ou rabuge”, disse-lhe o pai que cuidava do jardim. Saiu sem fechar o portão.

Lembrou o que dizia sua avó: “junta-te aos bons e serás um deles, Junta-te aos maus e serás pior do que eles”. Juntou-se ao bando que o esperava na esquina. Ganharam o mundo em direção ao sítio de mangas.

“Quem com muitas pedras bole, uma lhe cai na cabeça”. Era a voz do tio que ouvia sempre quando acertava uma manga com a baleadeira.

“Mais vale uma pomba na mão do que duas voando”. Foi o que lhe veio à cabeça quando encheu cada bolso das calças com duas mangas espada.

Quando entrou em casa, seu pai garantiu que o matava se saísse com aquele bando de moleques novamente. Sua mãe disse que ele ia para o inferno se continuasse roubando mangas do sítio alheio. Sua irmã mais velha contou que não era apenas mangas que esses moleques roubavam. “Quem cala consente”, ouviu da velha empregada. E se trancou no banheiro.

Com a chegada da noite, os barulhos da casa voltaram ao normal. Ele deu uma carreira para o quarto e se escondeu na cama. "Quem não trabalha não come", falou a raiva do pai antes de mandar recolher a comida da mesa.

“Quem não arrisca, não petisca”, foi a última coisa que pensou antes de cair no sono, sem se importar com os fiapos de manga entre os dentes.

19 abril 2011

Rosbife


Ela morreu e não fez meu rosbife. Mas não foi por má vontade. Foi falta de tempo. Pois fazer um rosbife, para ela, demandava muito tempo. Primeiro, era preciso ir de véspera para o açougue escolher uma boa peça de filé. Limpar a carne era um trabalho de joalheria. Não podia ficar um fio de nervo, uma nesga de gordura. Já perto do almoço, às vezes do jantar, ela exercia sua tirânica vontade sobre toda a cozinha. Tudo devia estar à mão. Todos os temperos, todos os legumes, o azeite, o vinho e certos segredos sovinamente guardados. Panela aquecida, era o momento da mágica: a peça rolava sobre o azeite fervente no tempo exato para criar uma crosta dourada e revelar, ao fio da faca, o interior macio e avermelhado.

Na última vez que ela veio em minha casa, não toquei no assunto do rosbife. Sua saúde estava abalada e eu sabia que, se pedisse, ela tirava forças das entranhas e fazia o prato pra mim. Mas não valeria a pena. Não queria que o meu prazer custasse o seu sacrifício.

Daí que ela morreu. Agora, se eu quiser rosbife, que o faça. E é o que vou fazer. Qualquer dia desses crio coragem e vou no açougue. É provável que ela também vá, pois nunca confiou na minha capacidade de escolha no que tange às carnes. É só deixar que o seu espírito implicante guie minhas mãos revolvendo, apertando e afundando a unha do polegar em todas as peças até achar aquela que prometa a crosta mais crocante, o interior mais macio. Depois vai ser fácil seguir suas ordens estritas e deixar que a mágica se faça mais uma vez.

Cada um que se vai, mais do que uma imagem, deixa um cheiro na nossa memória. Meu pai me deixou o cheiro de jenipapo misturado com o suor do seu corpo. De minha mãe ficou o perfume do óleo que usava no cabelo negro e espesso. Cada um que se foi, deixou um cheiro. O cheiro que Zita deixou foi o de rosbife incensando a cozinha.

13 abril 2011

Só depois


Primeiro, é o tempo do trauma. A compreensão vem só depois. Estamos todos traumatizados com a tragédia do Realengo. É impossível para todos nós compreender o que leva um homem a invadir uma escola e atirar a esmo, matando e ferindo crianças e adolescentes. É doloroso assistir pela televisão o drama das mães, colegas e professores das vítimas, todos atônitos, como nós, frente à brutalidade do acontecimento.

Não satisfeita com o nível de dramaticidade inerente ao fato, a mídia se encarrega de multiplicá-la, aumentando, assim, o impacto traumático sobre os indivíduos atônitos. Numa pressa irresponsável em busca de audiência, exibem a opinião de supostos especialistas que, lisonjeados pelo privilégio, ofertam peças mal-acabadas de achismos travestidas em afirmações científicas.

Nada que se diga agora poderá nos explicar os motivos da mortandade do Realengo. Não adianta tentar compreender um ato não-racional com os argumentos surrados da velha razão cartesiana. O fato de não suportarmos a ambigüidade e a falta de sentido nos leva à busca apressada de causas que justifiquem os efeitos e nos leve de volta ao terreno seguro das certezas.

No caso específico do Realengo, estamos ainda no primeiro tempo. O tempo do trauma. Agora, nenhuma compreensão é possível, pois é próprio do trauma a falta de sentido. Só depois, a paciência nos mostrará o caminho para uma outra racionalidade. Uma maneira nova de ver e ouvir solidariamente o sofrimento humano. Uma forma de acolher e conviver com o estranho e inquietante que se move nos outros e em nós mesmos. Por enquanto, sejamos pacientes. Chegará o momento de uma outra razão que nos trará novos sentidos. Mas não agora. Só depois.

06 abril 2011

Memória das sombras



Ninguém manda na memória. E quanto mais se insiste em esquecer, com mais força volta a coisa que se quer esquecida. Por isso é que não foi possível deixar passar em branco o aniversário do golpe militar de 64.
A data inaugural de todo o tempo sombrio em que a liberdade nos foi cerceada bem que poderia passar despercebida, se não fosse um certo deputado federal vociferar saudosamente na televisão o nome de todos os militares que mandaram neste País durante 21 anos.
É claro que este homem só está no poder porque foi eleito por um número considerável de cidadãos. Pessoas que concordam com o seu pensamento truculento e retrógrado. Gente que apóia a violação das liberdades individuais, o banimento do direito à associação, as prisões sem mandato judicial, a tortura como método de interrogatório e as execuções sumárias como forma de se livrar dos inimigos.
Vivi a ditadura como um cidadão comum, participando de atos públicos e aproveitando os espaços possíveis para divulgação das idéias que achava e acho mais adequadas a uma vida digna para todos. Não tenho nenhum ato de heroísmo no currículo. Mas tenho na memória uma dose muito forte de medo. Um medo que fiz o possível para não transmitir aos meus filhos e do qual defendo minhas netas. Um medo que emanava de cada desconhecido que nos rondava. Medo de perder o emprego ou o curso por uma delação ou pela má vontade do chefe ou do diretor da faculdade.
É a memória deste medo que me faz, hoje, temer pessoas como o deputado saudoso e seus eleitores. Porque sei que os métodos brutais que eles defendem ainda existem e são aplicados nas celas escuras das delegacias e presídios, nas favelas e nos ermos deste País. São os restos das sombras do longo período de sombra que manchou a história deste País. E se não fizermos alguma coisa para eliminar estes restos, veremos uma grande sombra de iniqüidades se abater indiscriminadamente sobre todos nós.
Eu sei que as boas memórias nos trazem alegrias. Mas as memórias más nos trazem lucidez. Mesmo as memórias das sombras.

Imagem obtida em: http://www.moba.be/