28 abril 2008

Um problema adiado


Existe vida após a morte, afirmam crentes de vários credos. Acho que a frase está invertida. O certo mesmo é que existe morte após a vida. Não vejo nenhum sentido, por exemplo, em receber, depois de morto, um camisolão branco e uma lira para cantar loas eternas ao Criador. Por maior que seja a paciência divina, um dia Ele enxotaria o bando de puxa-sacos para o andar de baixo.
Muito menos aceito a idéia de que exista um mundo um pouco acima do nosso, em tudo idêntico ao nosso, de onde os mortos dariam palpites em nossa vida. Se é para continuar a fazer o mesmo que fazemos em vida, pra quê, me digam, morrer?
Isto sem falar na hipótese da transmigração, em que eu posso voltar a este mundo na forma de algum animal, vegetal, ou mesmo mineral. Claro que sentiria um certo orgulho em ter sido a pedra inspiradora do célebre poema do Drummond, mas não me sentiria muito bem sendo a barata de Clarisse Lispector.
Talvez o leitor esteja perguntando o motivo dessas digressões sobre a morte. É que andei meio doente esta semana e me botei a pensar no que aconteceria depois da minha morte. Claro que não me preocupei com os sobreviventes. Mais cedo ou mais tarde, eles se acostumariam com minha ausência e continuariam tocando suas vidas. O problema maior era comigo.
É impossível para qualquer pessoa pensar o mundo sem a sua presença. Freud já dizia que não há representação da morte em nosso inconsciente. Pela razão pura e simples de que ainda não tivemos a experiência da morte. Pelo menos da morte deste eu que insistimos em idolatrar. De minha parte, tenho a maior dificuldade em me imaginar vivo depois da morte. Por mais que seja eu que esteja vivo, serei sempre um eu... morto. E se houver reencarnação não serei, ainda bem, o mesmo desta vida.
Felizmente, começo a semana bem melhor de saúde. Posso deixar este problema para mais tarde. Bem mais tarde, espero.
Imagem obtida em: harpad.com.sapo.pt

21 abril 2008

O tempo que não passa


Tem um tempo que passa e um tempo que não passa. O tempo que passa é o tempo dos relógios, das noites e dos dias. O tempo que não passa é o tempo congelado daquilo que não logrou virar palavra.
Cada um de nós tem um tempo que não passa. Um tempo de que não se fala. Tempo de um tempo em que ainda não tínhamos acesso à fala. Um tempo de fragmentos, de restos desarticulados de imagens e ruídos sem sentido. Um tempo cansado de não passar.
Tempo em que as coisas aconteceram sem o amparo das palavras. Por isso, as coisas são dardos cravados na carne, de onde, doendo, fazem sinal em forma de angústia. Por isso, este é um tempo que insiste em se contar, para de uma vez por todas deixar de doer, tornando-se passado.
A humanidade também tem um tempo que não passa. Tempo em que não tínhamos mais do que inferno e horror. Tempo em que ainda não tínhamos as palavras com que falar de inferno e horror aos nossos descendentes. E quando a carne se fez verbo, foi este tempo sem memória que inventamos em volta das fogueiras. E na falta da memória, criamos mitos.
É fácil agora entender porque, desde as cavernas, falamos tanto, grafamos tanto, insistindo loucamente em marcar nossa passagem pelo mundo. Temos certeza da morte. Sabemos que vamos passar. Mas, antes, queremos lançar no mundo dos signos – para que passe - o que trazemos em nós deste tempo que não passa. Para que de inferno e horror não reste mais do que as palavras que os nomeiam.

Imagem obtida em
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14 abril 2008

Às vezes dá certo


É difícil dar certo. Homem e mulher raramente dão certo. Chego a pensar que vivemos com o par de uma outra espécie animal. Como se na hora de fechar a porta da arca, o orangotango macho ficasse vendo a cobrança de pênalti do seu time no último minuto da prorrogação e a fêmea do chipanzé estivesse em dúvida sobre o que usar no primeiro dia da viagem. Sem poder esperar mais, Noé considerou como casal os dois representantes das espécies parecidas e levantou âncora. Algo assim aconteceu com o homem e a mulher. Senão, porque cada um dos gêneros tem um nome diferente?
Daí a estranheza entre os casais dos ditos humanos. Nenhum dos dois se comporta segundo as expectativas do outro. A questão sobre as tampas das bacias sanitárias é uma das melhores provas da nossa incompatibilidade. A diferença entre as capacidades de perceber as nuances das cores é uma demonstração cabal de que não temos uma origem comum.
É este desencontro pré-diluviano que provoca a necessidade de homens e mulheres se reunir em separado. Você já viu um bando de tatus ficar no bar até tarde discutindo futebol? Já teve notícias de três ou quatro jaguatiricas tagarelando no banheiro?
Cada homem e mulher carrega uma certa nostalgia pela ausência do verdadeiro par. Por isso gostamos tanto de animais de outra espécie. Talvez adivinhemos neles alguns traços do objeto perdido.
Sei que esta hipótese sobre o desencontro originário carece ainda de respaldo científico. Mas não é coisa difícil de provar. Homem e mulher estão com o par da espécie errada. Mas às vezes dá certo. E é muito bom quando dá certo.

06 abril 2008

Gênesis


E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas. G. 1:2.


Abriu os olhos sem saber onde estava. E ficou sem saber, pois estava envolvido pela escuridão. As costas doíam. Sentiu que estava deitado sobre tábuas. E as tábuas flutuavam. Os ouvidos vieram em seu auxílio e informaram que estava em alto mar. Não quis se mover. Não sabia a extensão das tábuas. Teve medo de cair no abismo das águas.

Não tinha como ver passar o tempo. Não havia tempo, portanto. Em um momento, porém, o tempo se inaugurou. Uma luz diáfana manchou de repente o que até bem pouco era treva. Não é mais de noite. Já é dia. Agora já pode contar o tempo. Isto é bom.
Com a luz, pôde ver as águas em que sua precária jangada flutuava. Olhando para cima, viu os grandes armazéns de água que deixavam o mundo cinzento. Mas sabia que além do cinza, havia a grande expansão dos céus.
Sob a pouca luz, seus olhos custaram a ver uma ponta de terra para onde as ondas empurravam sua jangada. E seu coração se abalou quando viu as ramagens da salsa caroba cobrindo a parte seca da areia da praia. E depois da salsa, o capim. E depois do capim, as árvores e nas árvores os frutos com que mataria sua fome.
Foi sob as árvores que viu se dissiparem as nuvens, mostrando um sol já em declínio. E ainda com o clarão do sol, ele viu uma lua cheia, garantia de que não voltariam as trevas. E com a lua vieram as estrelas que lhe contaram do lugar onde estava e em que estação do ano se vivia.
Com o novo dia vieram os pássaros. Com as águas claras, vieram os peixes. E depois veio o gado pequeno e grande, vieram os bichos que se arrastam no chão e os mais fugidios e ferozes. A tudo ele via, de tudo se servia, mas o seu coração estava triste. Estava só.
E, de tão só e triste, dormiu. Dormiu soluçando. Dormiu com frio. Mas quando acordou, um lado do seu corpo estava quente. Deste lado estava outro corpo, um pouco diferente do seu. Os dois corpos estavam nus. Mas não havia vergonha em seus rostos. O amor criava ali um novo mundo, criando novamente aqueles dois. Macho e fêmea os criou.

Clube do Conto da Parahyba, 5 de abril de 2008
Imagem obtida em www.cacomigo.blogger.com.br/maos%20dadas.jpg