27 abril 2007

A grande aventura



Primeiro eu quis ser caubói, ir para o velho oeste, matar um bocado de peles-vermelhas, botar toda a quadrilha na cadeia e me casar com a mocinha. Depois eu quis singrar mares, descobrir ilhas, achar tesouros, vencer dragões e me casar com a mocinha. Mais tarde eu quis uma motocicleta, um fuzil, uns camaradas para liberar praças e me casar com a mocinha.
Um belo dia, eu simplesmente me casei com a mocinha. A verdadeira aventura da minha vida começava ali. Uma mão na frente, outra atrás, duas faculdades particulares para pagar, uma barriguinha cada vez mais saliente e dois salários de proporções inversas aos nossos sonhos e necessidades.
Desta forma ou de outra mais ou menos parecida, começam as grandes aventuras deste mundo. São muitas as emoções que esperam aqueles que se lançam ao mundo com a coragem dos inocentes e a determinação dos loucos mansos. Tem gente que se queixa da falta de sabor do seu cotidiano. Acho que essas pessoas ainda estão presas aos índios, dragões e tiranos dos seus sonhos, à espera de grandes movimentos emotivos.
Um casal brasileiro estava mergulhando no fundo do mar da Tailândia e sentiu um suave movimento das águas acima de seus corpos. Quando saíram do mar, ficaram aterrorizados com a devastação da tsunami. Com isto nos lembram que os grandes transtornos, os movimentos mais devastadores são mais sensíveis na superfície. Na profundidade, a percepção dos movimentos é mais delicada, requer sentidos despertos e atentos.
Enquanto estivermos em busca dos grandes movimentos na vida, talvez não consigamos captar os sinais mais profundos da mudança. E não estou falando dos grandes eventos da vida de cada um: casamento, formatura, nascimento de filhos, morte de pais. Refiro-me aos pequenos momentos do cotidiano em que descobrimos algo de novo em nossa volta. Principalmente quando nos deparamos com o novo, o estranho, o numinoso na voz, no rosto, no movimento daqueles que vivem ao nosso lado. Se repararmos bem, estamos o tempo todo mergulhados numa grande aventura.

20 abril 2007

O fim das coisas







Todas as coisas terminam. Uma flor termina quando cede seu lugar ao fruto ou quando deixa de enfeitar a sala. Um brinquedo termina quando se quebra ou deixa de encantar seu dono. As ferramentas terminam por excesso de uso, pelo uso indevido ou por uso nenhum.
Os animais também terminam. Uns, de forma violenta, vão servir de repasto aos homens, dentre outros animais. Outros terminam quando já não servem mais aos seus instintos. Todas as coisas, todos os bichos um dia encontram seu fim.
Só o homem não termina porque não tem fim aquilo que o faz homem: o seu desejo. Mesmo às portas da morte, o desejo ainda está lá, querendo evitar que se morra, ou querendo que se morra bem.
Eis uma diferença entre os homens e as coisas. Todas as coisas terminam. O homem morre, mas morre inacabado. Por isso somos tristes, melancólicos. Porque vemos acabar as coisas que nos constituem. As casas em que um dia moramos, as cidades em que um tempo vivemos, as roupas que muitas vezes vestimos, os objetos que um dia fizeram parte do nosso corpo.
A isto estamos fadados: assistir ao fim das coisas. Invejar o fim das coisas que findam sem a angústia com que caminhamos para a morte.

15 abril 2007

O dia em branco


(Para Ana Lia, a pedido de Luana)

Abrir a porta da rua e dar de cara com o mundo. Apostar no imprevisível. Ganhar o mundo. É assim que se começa um dia em branco.
Os melhores dias são aqueles que se abrem à nossa frente sem nenhuma proposta, nenhum compromisso. O dia em branco nos faz apenas um convite: viva-me. E nos atiramos sem hesitação, porta a fora, mundo a fora, ao sabor do acaso dos encontros.
Flanar, esta é a única lei que o dia em branco nos impõe. Andar à deriva, deixar às próprias pernas a escolha do caminho. Dobrar uma esquina movido por um som, uma cor, um cheiro, uma lufada de ar. Parar por qualquer coisa, ou coisa alguma. Flanar é isto, uma espécie de livre-associação ambulante.
Meus melhores dias em branco aconteceram em minha juventude, no Recife, principalmente quando estava desempregado. Acordava tarde e ganhava o mundo, muitas vezes apenas com o dinheiro da passagem de ida. Já no ônibus, o dia me surpreendia. Havia sempre um detalhe do caminho que se iluminava. Ou uma cena urbana trivial ganhava um novo sentido. Dentro do ônibus mesmo, as pessoas geravam novidades.
Mais do que as paisagens, o que de melhor um dia em branco nos oferece são as pessoas. Elas servem como ponto de ligação entre os lugares. E dentre essas pessoas, os amigos sinalizam portos seguros onde descansar antes de nos jogarmos novamente na corrente do dia.
O dia em branco se nos oferece como uma folha de papel onde podemos escrever um poema ou uma lista de compras. Depende muito do que quisermos fazer dele. Como um navio que se constrói em alto-mar, em plena viagem, sua forma final dependerá da nossa perícia simultânea de navegante e armador. E somente ao seu final, quando nele pusermos nossa assinatura, o dia, já feito, revelará, enfim, o seu sentido. E não esperemos grandes revelações. O que o dia nos diz, ao seu fim, é algo simples: foi bom você ter me vivido.

09 abril 2007

Lições da tarde

Com a tarde nova
aprendo que tenho sombra
Com a tarde alta
aprendo a cair em silêncio
Com ao fim da tarde
aprendo ir embora
Com a tarde morta
aprendo a lição do nada.
{Ronaldo Monte}
Publicado no Blog Teia de Palavras

08 abril 2007

Manhã de Páscoa


Este foi o mar que eu vi na manhã do Domingo de Páscoa, em Cabedelo. As nuvens mal conseguem filtrar os poucos raios do sol. Dali a pouco choverá. Refletindo o cinza azulado do céu, o mar calmo ensaia pequenas ondas perto da praia. O barco repousa calmo ao longe. E isto, em vez de paz, me dá uma fisgada de de tristeza. Pois a manhã mal começava e eu sabia muito bem o que ia acontecer dali a poucas horas. Vão chegar os homens. E com eles tudo o que de mais bárbaro foi inventado para corromper a harmonia desta manhã.
Mais que tristeza, me causa angústia saber que o meu desejo de Páscoa não pode ser realizado. Pois o meu desejo é que a beleza desta manhã avance dia a dentro até chegar às franjas da noite. E que todos os homens e mulheres do mundo possam ter um dia completo de paz.

06 abril 2007

Margini

Recebi um e-mail da itália, postado por Rosella Pristerà, com a tradução do meu poema Margens. Transcrevo toda a mensagem, acrescentando os meus votos de uma Boa Páscoa para todos.

Tra poco è Pasqua. Festa. Cercavo qualcosa di adatto all'occasione per mandare a tutti voi i miei sinceri auguri. E mi è venuta in mente una poesia d'amore, letta un pò di tempo fa in un bel blog di un poeta brasiliano, Ronaldo Monte. Siete quindi pronti a varcare i margini del sogno? Buona Pasqua a tutti. Rosella Pristerà

MARGINI

Passava un fiume tra i loro margini.
Sul margine, passava la sera.
Da margine a margine, il ponte.

Nel mezzo della sera,
nel mezzo del ponte,
improvvisamente
si toccano i margini.

Che succede, chiede lei.
Un bacio, dice lui.
Come potrebbe aver detto
: una sera.
O detto in altro modo
: un ponte.

(Ronaldo Monte, traduzione di rioro)

MARGENS

Passava um rio entre as margens deles.
À margem, passava a tarde.
De margem a margem, a ponte.

Em meio à tarde,
em meio à ponte,
súbito
tocam-se as margens.

O que é isso, ela pergunta.
Um beijo, diz ele.
Como podia ter dito
: uma tarde.
Ou dito de outro modo
: uma ponte.