28 setembro 2006

A cru


Há quatro anos atrás, por essa época, na frente da minha casa tinha uma faixa bonita dizendo que todos ali votavam em certo candidato. Botei adesivo no carro, comprei boné, camisa e chaveiro para a família toda. Não escondia minha esperança de que, a partir daquela eleição presidencial, meu País não seria o mesmo. Era isto que me diziam as ruas. Era isto que o coração me assegurava.
Bem feito. Quem mandou pensar que política se faz com o coração? Política é cálculo, astúcia, estratégias para galgar o poder a qualquer custo. Foi isto que apenas constatei, pois já sabia. Mas não custava nada nutrir a esperança de que daquela vez poderia ser diferente.
Eu vivo de sonhos. Dos meus e dos alheios. Por isto sonhei, junto com milhões de brasileiros, o sonho coletivo de que seria possível construir um país justo, em que finalmente se conviveria numa sociedade verdadeiramente democrática.
Como de todo sonho, deste também acordamos. O que não esperávamos - pelo menos eu não esperava - era o enorme contraste entre o sonho e a realidade perversa que nos aguardava abrir os olhos. A bem dizer, acordei com o barulho do abrir e fechar das portas e gavetas do meu quarto por homens ávidos em levar tudo o que lá encontrassem enquanto eu sonhava.
Hoje, de olhos bem abertos, luto para que nenhuma sedução me bote pra dormir. Para que nenhuma promessa ponha em marcha minha propensão natural aos grandes sonhos. Tiro meu título da gaveta com mão firme, sem nenhuma emoção. Vou sair de casa de cara séria e passos lentos. Vou entrar na sessão sem trocar olhares de esperança com os outros eleitores. Vou apertar uns tantos números ligados a nomes que me dizem muito pouco. Apenas que não há mais tempo para os sonhos. Temos que encarar este País com olhos secos. A cru.

25 setembro 2006

Carta de Pedra



Sono de pedra
no leito do rio.
Sonho da pedra:
Enigma Ingá.

Como quero te arrancar
das entranhas desta rocha.
Quanto desejo o recado
marcando lugar e hora
do encontro com teu sentido.

Antes da história
alguém me amava
e escreveu esta carta para mim.

Afago a letra da pedra
e encontro o calor antigo
das mãos do antigo poeta.

Enigma Ingá.
Carta de amor
aberta.
Impenetrável.

De Tecelagem Noturna (2000)

23 setembro 2006

Uma dor só


O verbo doer é enganador. Só se deixa conjugar nas terceiras pessoas. Na gramática, só ele ou eles doem. Segundo as boas regras, eu não dôo, caro leitor. Tu também não dóis.
O verbo doer não me engana. Eu dôo. Há momentos em que nada me faz doer, senão eu mesmo. Apenas por força da gramática, sou obrigado a projetar a fonte da minha dor em algo ou alguém fora de mim. Ou então, divido-me em duas partes e elejo uma delas como fonte do meu sofrimento. Viro corpo e digo: minha alma dói. Viro alma e afirmo: meu corpo está doído.
Dane-se a gramática. Eu dôo por completo. Apenas o meu orgulho de ser humano me faz pensar que essa maravilha suprema das espécies é incapaz da vileza de causar seu próprio sofrimento. Daí se construir uma gramática em que só eles doem. Quando muito, admito que doam em mim.
Amputados de mim pela gramática, meus braços doem, dói meu coração, doem-me as lembranças. Sendo assim, meus braços não são eu, meu coração se afasta de mim e minhas lembranças não me constituem. Separo-me do que vivo ou das partes que me fazem. Transformo o que é eu em eles e os ponho a doer longe de mim.
Mas à medida que envelhecemos, vai se revelando uma verdade. Não são mais as juntas, os músculos, a cabeça ou o peito que doem. É uma dor só que a cada momento visita uma parte do nosso corpo. E de tanto senti-la passear por nossos sítios, concluímos que esta dor não apenas é nossa. Fomos esta dor o tempo todo, mas só agora nos reconhecemos nela.
A dor gramatical não me pertence. Nem a ti, leitor. Há momentos em que é impossível atribuir aos outros a prioridade da minha dor. Há momentos em que estou só e nada me dói além de mim. Aí sim, o verbo intransitivo circula sem saída. Não há gramática que me salve. Eu dôo. E nas tuas horas de solidão, caro leitor, tu também hás de doer.

20 setembro 2006

Varandas



Não é alpendre, nem terraço. Não é balcão, nem sacada. Quando se fala varanda, vemos o sol da manhã e sentimos na pele o seu carinho morno. A palavra varanda abre um lugar dentro de nós onde nunca estamos sozinhos. Varanda é lugar de namoro, de conversa fiada, de esperar o almoço, de pegar uma fresca antes de ir dormir.
Tenho muitas varandas dentro de mim. Varandas de minha infância, onde ouvia as conversas dos mais velhos e amealhava palavras para varandas futuras. Varandas da juventude, onde ensaiei palavras solenes que logo perderam a utilidade e aprendi palavras simples que me valeram no trabalho insano de dar nome ao mundo. Varandas da maturidade, onde as palavras se livram de mim e vão nascer em outras bocas, com novos sentidos, novas cores.
A palavra varanda me acordou de manhã na boca de minha mulher. Ela disse que achava a palavra bonita. Mas sei muito pouco das varandas dela. Por mais íntimos que sejamos de alguém, dificilmente compartilhamos as varandas. Não sei nem quero saber quem freqüenta as varandas que ela guarda ou inventa dentro dela. Quando muito, posso nutrir o desejo legítimo de estar em uma delas. Devo estar, não é? Acho que sim.
Mas o melhor é que seja assim: cada qual com suas varandas. Lugares imaginários para onde podemos ir a qualquer momento e lá encontrar as pessoas certas para cada ocasião. Há varandas para momentos graves, outras para as alegrias, umas para tagarelar, outras para ficar em silêncio.
O importante é que a varanda não deixa ninguém só. Para a solidão temos os terraços, os alpendres, os balcões e as sacadas. Uma varanda é um lugar feito de palavras trocadas entre quem se quer bem. Um lugar onde se possa sentir a presença das vozes que nos cobrem de som e de sentido. Um lugar de onde se veja voar a palavra águia colhida no ar em toda sua beleza.

19 setembro 2006

O breve e o novo



Texto lido no lançamento de Memória do fogo, em Maceió.

Na sala de espera do Cine Plaza, em frente da minha casa, tinha um cartaz meio escondido numa parede lateral que sempre anunciava um filme com a palavra breve em diagonal, logo abaixo das fotografias. O que me intrigava, era que o filme anunciado nunca passava. Daí eu nunca ter aprendido direito o significado da palavra breve.
Outra coisa da sétima arte que me confundia era que, toda semana-santa, anunciavam A paixão de Cristo em “cópia nova”. Eu ia lá todo animado e só por muito respeito ao crucificado não puxava a maior vaia quando a tal cópia nova se partia pela décima vez, com o prenúncio da voz do narrador que ia ficando arrastada e desmesuradamente grave. Desta forma, minha apreensão do significado de “novo” também ficou prejudicada pela falta de precisão conceitual do gerente do Cine Plaza de Maceió.
Com a palavra breve, aprendi a esperar. Esperar muito. Esperar até o dia em que o velho filme fosse substituído por outro. E aí começar novamente a esperar. A única certeza que a palavra breve me dava era que brevemente eu me acostumaria com a idéia de que breve é um tempo de promessa. E é preciso que tal promessa nunca se cumpra para que a palavra breve possa continuar a existir.
A expressão cópia nova, por sua vez, me ensinou que uma cópia, por mais nova que possa ser, nunca vai deixar de ser uma cópia. Como tudo no mundo é feito de muita repetição e um pouco de acaso, aprendi que devo esperar muito pouco de novidade ao longo dos meus dias. Se quiser algo de novo, que eu mesmo tente cria-lo a partir da monotonia das horas que desfio.
Como a grande maioria dos lugares da minha infância, o velho Cine Plaza não existe mais. Não mereceu nem a mínima glória de se transformar em supermercado ou templo neo-pentecostal. Sua entrada principal foi simplesmente tapada com tijolos. Quem fez isto não desconfia que transformou em túmulo uma fonte de sabedoria.


Hoje, mais uma vez a vida me coloca frente à dialética do breve e do novo. Saí de Maceió há quase 50 anos. Não fui porque quis. Foi meu pai quem me levou para o Recife. Fui com a ilusão de que voltaria em breve. Não sabia que estava sendo vítima do breve dos cartazes de cinema. Mas se não me trouxe definitivamente de volta, a vida me fez vir aqui muitas vezes para ver minhas tias, meus primos e primas, meus amigos. Me fez demorar um pouco em 1968, cursando o NPOR no velho 20 BC. Cada vez, a brevidade do reencontro, o sentimento de estar sempre de visita me fizeram sentir um pouco estrangeiro em minha cidade de nascença. Hoje, eu sei eu não volto mais. Por isso aprendi a construir um tempo extenso a partir da brevidade de cada visita.
Cada vinda me dava a impressão de perda da cidade da minha infância. Sempre foi grande a decepção ao ver que desaparecera um ponto de referência que testemunhasse da minha passagem pelas ruas, praças e praias de Maceió. Com o passar do tempo, criei a fantasia de que esta cidade já não me pertencia. Com se, ao destruir os monumentos da minha passagem por aqui, ela me obrigasse a construir uma nova história a partir dos traços dos momentos vividos que ainda permanecem indeléveis em algum lugar da memória. Com isto, alimentei a ilusão que construía uma criatura nova, que pudesse olhar sem saudade a cidade nova que se construía a cada vinda. Hoje, na presença desses rostos amados, compreendo que é impossível a um homem voltar como novidade à sua terra. Numa contradição com a idade com que volto, volto como uma cópia nova do menino que saiu daqui. Um menino antigo, ainda perplexo com as nuanças do breve e do novo que o tempo tentou lhe ensinar nos cartazes dos filmes do velho Cine Plaza.

Maceió, 14 de setembro de 2006

14 setembro 2006

Digitais & analógicas


Ele olhou fixamente para o visor do seu Nokia e comunicou o que lhe ditava a precisão dos dígitos: você está cinco minutos atrasada. Pela fresta do olho livre do sacrifício do rímel ela passou pelos ponteiros do seu minúsculo Seiko e respondeu: só um minutinho, estou quase pronta.

Não é que mentisse. Antes, era fiel a um princípio estrutural das almas femininas. Estar apenas com um olho pintado é análogo a estar quase pronta. Faltava apenas o rímel do outro olho, o batom e o delineador nos lábios, um pouco de rouge nas bochechas, escolher a bolsa e os sapatos. Fora isto, estava quase pronta.

Mulheres são analógicas. Desde novinhas aprendem que homem é tudo igual. E passam o resto da vida a nos tratar a todos analogamente. E nós, ingênuos digitais, achando que cada mulher é única.

E cada mulher é única, mesmo que repita em seus domínios um padrão comum ao seu gênero: o ódio generalizado a qualquer bugiganga que contrarie a sua atávica analogicidade. Mesmo que essa bugiganga tenha custado quase cinco mil reais e consiga armazenar seiscentas fotos em sua maravilhosa memória digital. Não confio nessa coisa, quero as fotos aqui, na minha mão, para mostrar às minhas amigas lá no trabalho. E acumulam pesadelosamente pilhas e pilhas daqueles álbuns incômodos, de folhas de plástico em que as fotos se grudam e se deformam e que têm a faculdade de aparecer nos lugares mais inesperados da casa: na fronha do travesseiro, no armário de mantimentos, na caixa de ferramentas.

Tristes de nós, os digitais, fadados a viver uma por uma cada fração do tempo, a não estabelecer as relações mais óbvias entre as coisas. Por isto não achamos os óculos, mesmo que estejam às nossas ventas, na prateleira do banheiro, onde acabamos de os colocar antes de lavar o rosto. Por isto não lembramos dos aniversários de casamento, do dia em que o primeiro filho perdeu o primeiro dente de leite, da última vez em que a chamamos pelo apelido do tempo de namoro. Para nós, é tudo como se fosse a primeira vez.

Homens são digitais. É isto que nos torna óbvios, previsíveis. A começar pelo principal traço físico que nos caracteriza. Ali está ele, dígito indiscreto, dizendo de cara a que veio (ou a que não veio). Impossível qualquer simulação. Símbolo de si mesmo, análogo a nada. O traço feminino, por sua vez, é a analogia por excelência. Lembra muita coisa: orquídea, monte, boca, túnel, rio subterrâneo, bolsa pequena, asa delta, borboleta, ninho... E olhe que não estou falando de metáforas. Metáfora é a própria mulher. Metáfora de si mesma, perpétuo enigma para nós, pobres metonímicos.

12 setembro 2006

Esperando setembro



Já vai setembro quase em sua segunda metade, e ainda não disse a que veio. Antigamente, muito antigamente, setembro começava logo. Talvez intimidado pelos desfiles militares, o verão se apresentava ao serviço já no dia sete de setembro. Todo mundo ia assistir à parada com roupa de banho por baixo, pois era falta de respeito à Pátria assistir ao desfile em trajes menores. Mas sejam lá quais fossem os motivos, temor ou devoção cívica, o tempo andava nos eixos. Verão era verão, não era essa esculhambação que temos hoje.
E o que temos hoje são os sábados morgados por nuvens cinzentas, a chatice dos ventos que agosto esqueceu nas praias levantando nuvens de areia que doem nas pernas. E o pior de tudo é o atraso no lançamento da nova coleção de meninas que setembro costumava despejar aos nossos olhos. Até que peguem cor e jeito, lá se vai outubro, quem sabe até metade de novembro.
Esta má vontade de setembro não é nova. Lembro que há uns dez anos já registrava a presença nefasta de agosto nos seus dias. Tanto, que escrevi um poeminha circunstancial que talvez valha a pena transcrever:

Sombras de agosto

As sombras de agosto
em pleno setembro
resmungam blasfêmias.

O vento de agosto
em dez de setembro
engelha meu corpo.

As bruxas de agosto
desovam em setembro
as sogras, Getúlio.

A garra de agosto
cravada em setembro
sangra suas virgens.

As cinzas de agosto
semeiam em setembro
poemas soturnos.

O gosto de agosto
no mel de setembro
que travo trará?

Meu vulto de agosto
no teu de setembro
que sombra fará?

Espero que agosto não se ofenda, mas acho que ele já teve seu tempo. É preciso dar tempo ao que setembro nos promete: às mulheres, o prazer da mostra sob o pretexto do calor. Aos homens, a mesma desculpa do calor para vagabundear pelas praias, emprestando os olhos a esse jogo antigo como o mundo.

08 setembro 2006

Fora dos eixos


W. J. Solha


Ronaldo Monte, autor do romance “Memória do Fogo” ( que acaba de sair pela Objetiva, na série Fora dos Eixos ), é psicanalista. Daí o dom, louco, de um de seus personagens, de ver as pessoas “por dentro”. Daí o trabalho seguro, do romancista, com os complexos de Édipo e Eletra, que vemos em belos personagens como Massapê e Joana Darque. Daí, talvez, o prazer que nos proporciona sua escrita, no que nos passa sua visão sombria de um mundo “out of joint”, como diz Hamlet, num texto luminoso. Freud era um grande escritor. Alguns livros dele, como “Psicopatologia da Vida Cotidiana”, são excelentes realizações literárias. Ronaldo Monte, romancista, também herda do Dr. Ronaldo Monte o conhecimento da alma humana e a precisão no uso das palavras. “Pois este corpo de menina parece que não está dando mais em mim”, diz – fascinantemente - uma de suas criaturas. “Se soubesse a palavra eriçado, estaria eriçado”, o ficcionista diz, soberbamente, de outro vivente seu.
Somente alguém que convive com a Sombra de cada um de nós poderia dizer, com pleno conhecimento de causa, que “é cada vez mais feio o que vejo dentro das pessoas”. Mas Ronaldo Monte faz, do relato do que vê, sua obra de arte, buscando, talvez, a sublimação do que vive em seu dia a dia, antes mesmo da aristotélica catarse de seus leitores. E o elemento essencial do instrumento que escolheu para isso, a palavra, ele a usa com brilho, criando um ambiente primitivo e místico, exacerbado pelo uso estratégico de orações do Livro de São Cipriano, o que termina por dar ao seu trabalho um tom, freqüentemente, de realismo mágico. “Tua mãe morreu de novo, menino. Vai chamar teu pai.”
“Memória do Fogo”, apesar de suas poucas cento e vinte e três páginas, não tem pressa alguma de nos levar ao seu final. Avança lento, com estórias soltas que, aos poucos, vão-se entrelaçando, até que tenhamos as sagas de seis homens e de uma mulher que se reúnem misteriosamente ao redor das chamas, cada um reconhecendo nos outros os pares de seu sofrimento. O fogo, evidentemente, é o elemento que funde essas narrativas, como quando a donzela pobre – Joana Darque ( nome da santa que morreu na fogueira) - sonha com o homem que lhe dê um fogão a gás, ou como quando entramos – no capítulo “Massapê” – na oficina do oleiro, onde uma leva de cerâmicas é trabalhada no forno.
Um livro estranho. Com material de primeira para discípulos e dissidentes de Freud. A Objetiva marcou um tento com sua série “Fora dos Eixos”. Marcou outro ao levar ao país mais esse rebento da nova literatura nordestina e, mais precisamente, paraibana.

06 setembro 2006

Lana Lobell



Não se trata de um trauma de grande monta, desses que nos exigem fortunas para torrar com o psicanalista. Também isto não pretende ser um conto. É mais uma maneira de economizar uma sessão de análise tomando emprestado o tempo do leitor.
Uma das minhas maiores desvantagens na vida foi ter nascido gordinho, falante e sabendo me comportar na presença dos estranhos. Tais atributos me faziam o preferido para acompanhar minha mãe aos lugares mais chatos que se possa imaginar. Um desses lugares era a casa da costureira.
Acho que minha propensão à asma deve-se ao cheiro de pano que sentia já ao dobrar a esquina da casa da costureira. Na sala, então, era uma tortura. Espirrava, sentia faltar a respiração. Mas como um bom menino, agüentava calado.
Não tinha com que me distrair enquanto minha mãe escolhia o modelo ou experimentava o vestido. Dispunha apenas de um monte de revistas velhas, escritas numa língua estranha, cheias de fotografias das coisas mais variadas. Relógios, utensílios de cozinha, aspiradores de pó, coisas inimagináveis se misturavam naquelas páginas amarronzadas. Do meio para o fim, vinham os vestidos, sapatos e bolsas de mulher. Lana Lobell. Era este o nome da revista. Somente mais tarde é que fui saber que aquele era o primeiro catálogo de vendas pelo correio inventado nos Estados Unidos.
Minha mãe passava horas discutindo com a costureira os detalhes do modelo escolhido na revista. Eu era que nunca conseguia reconhecer no corpo pequeno e redondo da minha mãe o vestido usado pela modelo esguia e peituda do catálogo. Claro que nunca disse isso a minha mãe. Como sabem, eu era um menino bonzinho.
Não se impacientem, pois chegou a hora de falar do trauma. Teve uma vez que eu folheava distraído a Lana Lobell quando meu olhar foi atraído pelo gesto desenvolto de minha mãe tirando o vestido. De repente, estava eu lá, com os olhos presos em minha mãe de combinação. Espero que o leitor saiba o que venha a ser uma combinação. Para os mais novos, informo que se trata de uma peça de baixo, para impedir que a transparência do tecido do vestido mostrasse o contorno das formas da freguesa. Há cinqüenta anos atrás, ver a mãe de combinação equivalia a um pecado quase mortal.
É natural, portanto, que me sentisse estremamente perturbado. Baixei imediatamente a vista para as páginas da Lana Lobell aberta frente à minha cara. Mas as páginas mostravam exatamente uma coleção de porta-seios, daqueles pontudos, usados hoje pela Madona. Ou seja, para onde meus olhos se voltassem, teriam que se deparar com a nudez feminina. Uma delas, para meu desespero, era da minha mãe.
A saída foi me refugiar nas palavras impressas daquela língua estranha. E um dos efeitos traumáticos se revela até hoje numa ligeira reação alérgica ao entrar na casa de qualquer costureira. Outro resquício da cena permanece na incapacidade de olhar uma fotografia de mulher nua sem ter antes lido a legenda. Nada tão grave que mereça ocupar o dispendioso espaço de uma seção de análise.

04 setembro 2006

Jornada dentro da noite



Para Ana Lia

Há uma luz acesa no meio da noite. Sob ela, um homem trabalha.
Trabalha com papel, lápis, livros, máquina de escrever, computador.
Quando o dia amanhecer, o seu trabalho será exposto no mercado à espera do melhor preço que será, como sempre, injusto.
Pequenos pontos de luz esparsos pela noite, muitos homens e mulheres navegam contra as trevas.
Quando o dia amanhecer e forem expor seu trabalho no mercado, descobrirão, satisfeitos, que o melhor da jornada foi adiar a escuridão total que ameaça descer de vez sobre o mundo.

(Publicado em "Pequeno Caos", 2003)